Passaporte para a História

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André Luiz.

segunda-feira, 7 de março de 2011

Gangues do Rio de Janeiro imperial


Durante o Império, as maltas de capoeira atemorizaram a capital. Escravos renegados usavam esse misto de dança e luta para desafiar seus senhores e controlar bairros inteiros da cidade
por Maurício Barros de Castro
Reprodução

No século XIX, o jogo se tornou uma arma dos cativos para desafiar a ordem a impor um poder paralelo em suas comunidades

Rio de Janeiro, século XIX. Os moradores do atual bairro da Lapa estão reunidos para assistir ao desfile de uma banda militar quando, de longe, avistam um grupo de negros que aparece à frente dos músicos, gingando e dando rasteiras. Eles se aproximam. Começam a exibir suas navalhas e ameaçar o público, tanto verbal quanto corporalmente. A multidão se assusta. Todos sabem o que significam aqueles movimentos: é a temível capoeira que desfila pelas ruas da cidade.

É comum ouvir que essa mistura de dança e luta nasceu no ambiente rural dos quilombos e senzalas, mas os estudos recentes mostram que a capoeira se desenvolveu em diversas cidades portuárias que receberam grande contingente de africanos escravizados, como o Rio de Janeiro. O jogo adquiriu características próprias na capital do Império, onde foi usado pelos escravos “ao ganho”, aqueles que trabalhavam nas ruas da cidade, como instrumento tanto de resistência ao sistema de servidão quanto de controle de determinados territórios.

Os capoeiras, como eram chamados os escravos rebeldes que percorriam os bairros hostilizando os cidadãos, se organizavam em maltas, grupos que funcionavam como espécies de gangues e controlavam áreas específicas da cidade. Temidos pela população, esses bandos eram frequentemente citados nos documentos policiais como uma ameaça à ordem pública, e a capoeira sofreu uma perseguição devastadora no Rio de Janeiro no início da República.

Ocupando territórios delimitados pelas freguesias – como eram chamados os bairros demarcados a partir das igrejas católicas –, o capoeira escravo vivia uma vida dupla entre a casa do senhor e a rua, onde trabalhava carregando água e dejetos, vendendo produtos para o comércio da capital, entre outros afazeres. A rua também era o espaço dos encontros, da organização, das festas, das fugas, dos ataques e onde aprendiam capoeira, que era utilizada nas brigas em grupo ou nos confrontos individuais, fosse à luz do dia ou na escuridão das ruelas e becos que formavam o núcleo da cidade no século XIX.

A condição ambígua do escravo no Rio de Janeiro colonial e, posteriormente, imperial possibilitou a associação dos capoeiras em maltas. A dependência da cidade em relação ao escravo fazia com que ele transitasse por vários segmentos sociais e espaços geográficos. Um lugar-chave para os encontros entre os capoeiras eram os chafarizes. Distribuídos em alguns pontos da capital, eram locais de disputa e integração dos escravos capoeiras que iam buscar água para as casas de seus senhores.

O mais antigo registro da palavra “capoeira” de que se tem notícia data de 1789 e se refere à libertação de um escravo chamado Adão, preso nas ruas do Rio de Janeiro devido à prática do jogo. Esse documento mostra que a repressão à capoeiragem acontecia antes mesmo do período joanino.

Havia muitos motivos para a capoeira ser perseguida. O primeiro deles era que inicialmente se tratava de uma prática de escravos rebeldes, soltos nas ruas, abertos às trocas culturais que levaram a capoeira a assimilar o uso da navalha, a partir de contatos com brancos das classes baixas, como os barbeiros e outros faquistas.

A navalha se tornou a arma-símbolo da capoeira, mas também eram utilizados bengalas e porretes nas lutas. Além disso, havia o repertório de golpes, como rasteiras, cabeçadas e rabos de arraia, entre outros. Ao mesmo tempo que absorveu outras práticas culturais, o capoeira passou a transmitir sua arte para representantes de outras classes sociais, chegando a atingir a elite. As maltas podiam ter poucos integrantes, algumas dezenas ou até 100 capoeiras, entre eles negros escravizados, libertos e uma minoria de brancos.

A geografia das gangues era determinada pelas freguesias, mas, apesar de existirem muitos grupos que pertenciam a essas localidades específicas, a cidade foi dividida em duas grandes maltas: Nagoas e Guaiamuns. A zona portuária e a área central da cidade eram controladas pelos Guaiamuns, que ocuparam os pontos de fundação do Rio de Janeiro, mais densamente povoados e onde foram erguidas as primeiras construções da capital, como o Paço Imperial, os chafarizes, as casas, quiosques e cortiços, também chamados de “cabeças de porco”.

O território dos Guaiamuns avançava pela atual praça Quinze, compreendia os morros de São Bento e Providência e terminava no Campo de Santana, área dominada pelos Nagoas, que estendiam seus domínios pelas freguesias que cercavam a área central da cidade. Controlavam, portanto, os atuais bairros da Lapa, Catete e Glória. Dessa maneira, dominavam uma parte da capital que ainda estava em formação, onde se localizavam as chácaras, sítios, fazendas e até mesmo quilombos. As duas grandes maltas também se distinguiam pelas cores das fitas que utilizavam: os Nagoas se identificavam com a cor branca, e os Guaiamuns, com a vermelha.

Além das disputas entre as maltas, era comum os capoeiras aterrorizarem os moradores do próprio território que ocupavam. Muitas vezes, quando a população se reunia para assistir aos desfiles das bandas militares, eles vinham à frente dos músicos, gingando, dando rasteiras, exibindo navalhas e ameaçando verbal e corporalmente o público. Em outras ocasiões, dezenas deles provocavam as chamadas “correrias”, que visavam tanto assustar o povo quanto resolver disputas entre gangues rivais, e não raramente acabavam com a morte de um capoeira ou mesmo de algum passante atingido durante a batalha.

A contínua ameaça que a capoeira passou a representar para a ordem pública provocou ondas de repressão policial ao longo dos períodos colonial e monárquico. Durante a época de D. João VI, o major Manuel Nunes Vidigal ficou tão famoso pela crueldade com que tratava os capoeiras que chegou a ser citado no célebre romance Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida.

O major Vidigal foi o criador das “ceias de camarão”, como eram chamadas “as sangrentas sessões de chibata a que eram submetidos os capoeiras e vadios por ele encontrados”, de acordo com o historiador Carlos Eugênio Líbano Soares, no seu livro A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850). Apesar da virulência de ações policiais como a do major Vidigal, os capoeiras resistiram durante todo o Império.

Um dos motivos para que as gangues se mantivessem mesmo com forte repressão policial era a cobertura que recebiam dos partidos políticos da época. Os Guaiamuns e Nagoas apoiavam, respectivamente, liberais e conservadores. O voto, na época, não era secreto, por isso muitos eleitores eram obrigados pelos capoeiras a votar nos candidatos dos partidos que apoiavam cada malta. Eles também eram responsáveis por criar arruaças nas eleições, que muitas vezes acabavam em confusões e brigas.

A proteção política dos poderosos e a atuação como capangas dos partidos tiraram dos capoeiras o brilho da resistência escrava. Além disso, eles passaram a servir de massa de manobra para interesses ideológicos. Após a assinatura da Lei Áurea, em 1888, eles chegaram a organizar uma milícia, chamada de Guarda Negra, que perseguia os abolicionistas, como prova da lealdade da capoeiragem à princesa Isabel e ao regime monárquico.

O golpe fatal nas gangues do Rio de Janeiro veio justamente com a Proclamação da República, em 1889. No ano seguinte, a capoeira foi inserida no Código Penal Brasileiro, por meio do decreto de 11 de outubro de 1890, cujo artigo 402 qualificou como crime “fazer nas ruas e praças públicas exercícios de agilidade e destreza corporal, conhecidos pela denominação de capoeiragem”.

O responsável pela façanha que culminou com o fim das maltas no Rio de Janeiro foi Sampaio Ferraz, chefe de polícia que comandou a campanha que desterrou os capoeiras para Fernando de Noronha, durante o governo de Deodoro da Fonseca. Dessa maneira, Ferraz entrou para a história como o algoz que decretou a morte da capoeira na cidade.

Estigmatizados como criminosos – já que sua prática se tornou ilegal em 1890 – e perseguidos como indivíduos perigosos, os capoeiras que permaneceram escondidos no Rio de Janeiro saíram, estrategicamente, de cena. Os que voltaram do desterro continuaram na clandestinidade. Poucas décadas depois, entre os anos 1910 e 1920, surgia o “bamba”. De acordo com o pesquisador e sambista Nei Lopes, é um termo que “vem do quimbundo mbamba, que significa exatamente mestre”.

O bamba tinha o domínio do corpo e do ritmo, por isso era um personagem típico do mundo negro, presente nas festas religiosas como ogã, tocando tambores para os orixás, o que o levou a desempenhar também papel fundamental na criação do samba de morro, na organização das escolas e dos blocos carnavalescos. Assim como os capoeiras do século XIX, que serviram de “baliza” para as bandas militares, eram os bambas que vinham à frente dos blocos, dançando ao redor do estandarte do grupo e ao mesmo tempo protegendo-o caso se encontrassem com blocos rivais, embalados pela música, gingando e dançando como se faz na capoeira, divertindo-se no carnaval, preparados para repelir qualquer ataque. Esse ritual mais tarde se tornaria uma das influências da coreografia do mestre-sala e da porta-bandeira.

Profundamente integrado à cultura popular da cidade, o bamba, que depois passaria a ser chamado simplesmente de malandro, vivia de pequenos expedientes, do jogo, do contrabando, da proteção de zonas de meretrício e casas noturnas e, mais tarde, do comércio do samba. Nesse ambiente marginal, vários malandros se tornaram famosos por façanhas que envolviam valentia e confronto com a ordem policial. O mais famoso deles foi Madame Satã.

Envolto em silêncio, o capoeira carioca deixou de se identificar como tal. Com o tempo, ele passou a se apresentar rebatizado como malandro ou bamba. Como afirmou o escritor e historiador Joel Rufino: “Caçada pela repressão a capoeira não acabou; o que nela havia de permanente, de essencial, sobreviveu na figura do bamba”. O capoeira só voltaria à cena novamente no Rio de Janeiro décadas mais tarde, assimilando a malandragem como uma de suas habilidades principais.


Com o fim da escravidão, a capoeira já havia se disseminado por diversas camadas sociais na capital, alcançando não só brancos brasileiros – entre pobres e ricos – como também europeus que viviam na cidade. O poeta português Plácido de Abreu, citado pelo escritor carioca Henrique Coelho Neto como um dos mais valentes capoeiras de sua época, morreu na Revolta da Armada, mas deixou o testemunho de suas experiências entre as maltas cariocas registrado em um livro pioneiro, chamado Os capoeiras, lançado em 1886.

Muitos frequentavam e conheciam o “submundo” da capoeira: intelectuais, profissionais liberais e “até figuras prestigiosas no plano político, como o barão do Rio Branco, quando jovem, e Floriano Peixoto, entre outros, foram apontados como praticantes da arte da capoeiragem”, escreveu o historiador Luiz Sergio Dias no seu livro Quem tem medo da capoeira?. No entanto, nem mesmo os que pertenciam à elite escaparam da fúria perseguidora de Sampaio Ferraz.

O caso da prisão de Juca Reis, em 1890, foi o maior exemplo desse empenho e causou uma grave crise política. Irmão do conde de Matosinhos, Juca era um capoeira conhecido por suas desordens e estava em Portugal quando as perseguições começaram. Quintino Bocaiuva, ministro das Relações Exteriores, era amigo do conde e assegurou a volta de Juca Reis. Ainda assim, ele foi preso e desterrado, apesar dos protestos e do pedido de demissão de Quintino Bocaiuva, o qual não foi aceito pelo presidente. Já o conde, indignado, encerrou suas transações comerciais no Brasil e retornou a Portugal.

O mais irônico do caso é que o próprio Sampaio Ferraz conhecia os golpes de capoeira, tanto que uma vez, ao ensaiar uma disputa com seu amigo, o poeta Luís Murat, levou uma rasteira e bateu com a cabeça na mesa de mármore do Café Inglês, no centro do Rio.

Não deixa de ser curioso que a “redenção” da capoeira tenha sido apresentada à sociedade pela elite. Em 1906, em plena belle époque carioca, a luxuosa revista Kosmos dedicou algumas páginas da sua terceira edição à capoeira, com textos escritos por Lima Campos, explorando uma visão romântica do jogo, e desenhos de Klisto, desenhista que também era capoeira, cujos traços mostram golpes e gírias utilizados na época de forma bem próxima da realidade das ruas.

Não tardou para que, entre intelectuais e integrantes nacionalistas da elite, surgisse a defesa da capoeira como esporte nacional, que deveria ser ensinado das escolas aos quartéis. O principal articulador dessa ideia foi Coelho Neto, que publicou na revista Bazar, em 1928, um artigo defendendo “o nosso jogo”. Não por acaso, a partir desse período e durante os anos 1930, a capoeira começou a ser ensinada nas chamadas academias, deixando aos poucos as ruas. As maltas do Rio de Janeiro ficaram definitivamente para trás, mas se mantêm como um importante acontecimento para entender a história da capoeira e do Brasil.

Maurício Barros de Castro é jornalista, pesquisador e doutor em história social pela Universidade de São Paulo. É autor dos livros Zicartola – Política e samba na casa de Cartola e Dona Zica (Rio Arte/Relume Dumará, 2004) e Mestre João Grande – Na roda do mundo (Biblioteca Nacional/Garamond, 2010).


fonte :
http://www2.uol.com.br/historiaviva/reportagens/gangues_do_rio_de_janeiro_6.html

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