Passaporte para a História

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domingo, 15 de agosto de 2010

História do Brasil Colônia.

Especial pronto-socorro colonial - Nem nobre, nem mecânico
Condições precárias da saúde na Colônia fizeram com que o cirurgião José Antônio Mendes fosse aceito como médico
Márcia Moisés Ribeiro


Se hoje os cirurgiões são profissionais especializados e respeitados, até meados do século XVIII a realidade era bem diferente em Portugal. Sem a formação teórica dos médicos que clinicavam, os cirurgiões eram vistos como trabalhadores manuais ou “mecânicos”, no jargão da época. Aprendiam na prática do dia a dia a fazer sangrias, curas de ferimentos, extrações de balas e aplicações de ventosas e sanguessugas. Não por acaso, tinham um status inferior ao dos médicos. Mas no Brasil, onde havia poucos profissionais de saúde, essa divisão se tornou mais flexível, o que permitiu ao português José Antônio Mendes dedicar-se às duas atividades e ganhar o respeito da sociedade colonial.

Mendes obteve a licença de cirurgião em 1739 e deixou Portugal ainda na primeira metade do século XVIII, em data desconhecida. Ficou durante 35 anos no Brasil, e, apesar de ter passado pela Bahia, viveu por mais de 30 anos em Minas Gerais, onde a atividade da mineração vivia seu auge e a população estava em crescimento.

Voltou à metrópole a tempo de presenciar a reforma dos estatutos da Universidade de Coimbra, em 1772. A iniciativa finalmente igualou o prestígio dos cirurgiões ao dos médicos, pelo menos no papel, determinando que “a cirurgia estudada e praticada em todas as suas operações por princípios científicos fosse considerada na mesma graduação e nobreza em que até agora se teve a medicina interna”.

Para os médicos já bem estabelecidos na metrópole, a Colônia não tinha muitos atrativos. Mas para cirurgiões como Mendes, o Brasil representava uma possibilidade de ganhar dinheiro, por causa da menor concorrência profissional – vários portugueses que escolheram esse caminho tornaram-se ricos comerciantes e donos de fazendas e escravos –, e de ascender socialmente, já que os conflitos entre cirurgiões e médicos não eram tão intensos por aqui.

As divisões profissionais na Colônia eram menos rígidas que na metrópole, onde médicos eram tratados como nobres, em posição superior à dos chamados “mecânicos”, situados nos níveis mais baixos da sociedade. Os cirurgiões ficavam no meio do caminho. Estavam no que o dicionarista Raphael Bluteau, autor do Vocabulário Português e Latino (1712-1728), definiu como “Estado do meio”: “Entre os nobres e mecânicos há uma classe de gente que não pode chamar-se verdadeiramente nobre, por não haver nela a nobreza política ou civil, nem a hereditária, nem podem chamar-se rigorosamente mecânicos por se diferenciar dos que o são ou pelo trato da pessoa andando a cavalo e servindo-se com criados... ou pelo privilégio e estimação da arte, como são os pintores, cirurgiões e boticários que por muitas sentenças dos senados foram em vários tempos escusos de pagar jugadas (um tipo de imposto) e outros encargos a que os mecânicos estão sujeitos”, explicou o dicionarista.

Enquanto os médicos frequentavam a universidade, os cirurgiões adquiriam o aprendizado prático principalmente no Hospital Real de Todos os Santos, em Lisboa. Terminada esta fase, eram submetidos a exames diante de mestres capacitados e, alcançando bons resultados, recebiam uma “carta de cirurgião aprovado”, que permitia o exercício da profissão tanto na metrópole como nas suas colônias. Em locais onde não havia médicos, situação muito comum no interior do Brasil, os cirurgiões também tinham autorização para exercer a medicina.



A precariedade dos serviços de saúde na Colônia fazia com que a experiência e a prática fossem mais importantes do que as teorias aprendidas no curso da Universidade de Coimbra. Seguindo os passos de outros cirurgiões portugueses que já haviam desembarcado por aqui, Mendes, logo que chegou, começou a cuidar de casos que eram da competência dos médicos, como a cura das chamadas “moléstias internas”. Doenças pulmonares, problemas uterinos, escorbuto e hemorragias intestinais de várias origens estavam entre os casos que ele costumava atender.

Muitos de seus pacientes eram negros que trabalhavam na mineração e, expostos à umidade e à friagem, desenvolviam doenças como o pleuriz. O problema era agravado pela má alimentação, que fazia os escravos terem frequentes hemorragias intestinais. “Fazem à noite os ditos negros uma massa a que chamam angu, que é feita de fubá, isto é, de farinha de milho, muito mal feita no moinho, e feita a dita massa em água sem sal, nem mais tempero algum e às vezes bem mal cozida, esta fica feita à noite com algum resto de feijão que sobejou da ceia, e assim, tudo frio, é o almoço de que atualmente usam”, descreveu Mendes, lembrando ainda que a água consumida pelos escravos normalmente vinha misturada com terra e ferrugem.

O hábito de os escravos trabalharem descalços, ficando sujeitos a pisar em pregos ou cacos de vidro, e a falta de instrumentos para atender emergências médicas como essas nas fazendas eram outros problemas relatados por Mendes no guia prático de medicina que escreveu, de título bem longo: Governo de mineiros mui necessário aos que vivem distantes de professores seis, oito, dez e mais léguas, padecendo por esta causa os seus domésticos e escravos queixas, que pela dilação dos remédios se fazem incuráveis, e a mais das vezes mortais. Publicado em Lisboa em 1770, o livro trazia toda a experiência clínica vivida principalmente em Minas e abordava tanto a cirurgia quanto a medicina interna. Seu objetivo era possibilitar que os pobres sem dinheiro para pagar por serviços de saúde e os senhores da América que viviam em locais mais isolados pudessem “remediar” parentes e escravos.

Outra área que acabou sendo invadida por Mendes foi a dos responsáveis pela manipulação de remédios. Chamavam-se boticários e eram, na definição de Raphael Bluteau, uma espécie de “cozinheiros dos médicos”, que os livravam do trabalho manual e, portanto, pouco digno da sua condição social. Ele reconhecia que, ao atuar como boticário, estava transgredindo os códigos que regulamentavam o exercício de sua profissão, mas justificava que era tudo feito em nome de uma causa nobre: socorrer os pobres e senhores de escravos que viviam longe até das boticas, que funcionavam como as farmácias da época.

Ultrapassando os limites legais de sua competência, Mendes prestou serviços importantes para a população de Minas, socorrendo pacientes particulares e ainda atendendo em dois hospitais da comarca de Serro do Frio, região onde hoje fica a cidade de Diamantina, no centro-nordeste do estado.

O esforço do português acabou sendo reconhecido com sua indicação para comissário do cirurgião-mor do reino na América, em meados do século XVIII. Era um cargo de bastante prestígio. Seus ocupantes eram responsáveis pela concessão das licenças de trabalho a profissionais como cirurgiões, barbeiros, parteiras e oficiais de boticário, e pela fiscalização de hospitais, boticas e medicamentos. Mendes só pôde ser eleito cirurgião-mor porque, ainda no Hospital de Todos os Santos, em Lisboa, mostrou tanta aplicação que foi aprovado como “cirurgião anatômico”, apesar de as aulas de anatomia estarem suspensas na época por pressão da Igreja, contrária a que corpos fossem dissecados em vez de enterrados segundo os ritos cristãos.

Com o respeito conquistado no Brasil, Mendes voltou a Portugal, onde presenciou a reforma promovida pelo marquês de Pombal na Universidade de Coimbra. Luiz da Silva Pereira Oliveira, autor de Privilégios da nobreza e fidalguia de Portugal (1806), foi um dos que lutaram pelo fim da diferenciação entre as atividades de cirurgião e médico. Na sua opinião, essa distinção só causava prejuízos ao bem público. Para ele, ambos prestavam serviços relevantes e dignos de nobreza. Mas a Colônia acabou se antecipando à própria metrópole ao igualar os status dessas atividades muito antes da reforma universitária – mais por necessidade do que por outro motivo. Não se tem muitas notícias de Mendes depois de seu retorno a Portugal. Mas o fato de ter escrito sobre suas experiências no Novo Mundo certamente lhe deu muito prestígio e reconhecimento na sociedade portuguesa.

Márcia Moisés Ribeiro é pesquisadora do IEB/USP e autora de A ciência dos trópicos: a arte médica no Brasil do século XVIII (Hucitec, 1997).

Saiba Mais - Bibliografia:

BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez e latino (1712-1728). Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1713. (Disponível em www.brasiliana.usp.br/dicionario/edicao/1).

MARQUES, Vera Regina. Natureza em boiões. Campinas: Editora da Unicamp, 1999.

SILVA, Maria Beatriz. Ser nobre na Colônia. São Paulo: Unesp, 2005.


fonte : http://www.revistadehistoria.com.br

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